Tem coisas que a gente só ouvia falar. Sabia muito de longe, sempre acontecendo com alguém mas nunca com a gente. Parece aquele parente que mora longe, que a gente ouve falar muito, mas nunca deu as caras de verdade, até o dia em que a criatura bate à nossa porta e nos diz: - Oi, muito prazer, eu existo e acabei de entrar na sua vida.
Assim foi com a Eutanásia. Na verdade, a gente já tinha se visto de longe numa UTI em 2006, mas foi só um encontro de olhares. Em 2009, nos esbarramos, ombro com ombro. Mas nunca nos apresentamos formalmente, nunca conversamos.
Tem dois dias, essa senhora tocou aqui a campainha e chegou de malas e sacolas. Se apresentou, sentou na cama do lado da nossa mais nova e nos falou com familiaridade, como a parenta distante que de repente aparece. Contou da vida e falou muito da morte também. De sofrimento. Das vezes em que a gente se viu, se esbarrou, mas nem se falou, apesar de eu ter pensado nela.
Não tenho fome. Nossa pequenina também não. Cheira a comida quando está num dia bom, se está num dia ótimo, lambe. Mas não come. Sofre a minha pequena? Não sei. Queria saber.
Dos outros dois encontros de longe com a Dona Eutanásia eu sabia o sofrer e também sabia que a luz no final do túnel era um trem vindo. Mas e agora? Escreve a veterinária do Brasil. Escreve o veterinário dos EUA. Conversamos com o daqui. Todo mundo diz pra eu mandar a parenta embora, mas todos também dizem que estão ouvindo o apito do trem, e que ele pode estar longe ou perto.
Eu deito na cama, abraco a pequena e canto. O refrão diz Avinu Malkeinu e eu choro, porque não entendo o porque do sofrer dela. Porque ela, um bichinho inocente? Mas nao tem porque. Merda acontece e ponto final. Acontece com filho humano, com filho felino, canino, com tudo. Simplesmente acontece e a gente que lide com o que está acontecendo.
A Dona Eutanásia vai mexendo nas panelas, se espalhando. Não temos forcas pra mandar embora, nem pra deixar ela fazer o que veio fazer. É o limbo, e o limbo é pior que o inferno, pelo menos assim dizem.
Me lembro do Dr. Kevorkian. Assisti à uma entrevista que ele deu. Ele sempre dizia que é direito da pessoa acabar com a própria vida, ainda mais se houver sofrimento. Mas e se a pessoa não sabe falar? Os olhos da minha pequetita às vezes são tristes, as vezes brilham de curiosidade e alegria, especialmente quando anda de ônibus. Como saber? Não tem como. Tem?
Deito do lado dela e tem vezes que ela ronrona, tem vezes que não. Já dormiu segurando a minha mão. Tem uma semana que não mia mais, a minha tagarela.
Sentamos no sofá da sala e D. Eutanásia puxa a cadeira reclinável. Acomoda-se com um sorriso. Nós temos essa presença incômoda em casa. A parenta que parecia abstracao virou concreta, dura, real ali no meio da sala colorida, que nossa bonequinha ainda nem conheceu.
D. Eutanásia tem todo tempo do mundo.
E minha filha, quanto tempo tem? Ninguém sabe. O relógio do quarto faz seu tic tac e eu acabo desejando que ele tivesse parado um dia antes dela ficar doente. Mas ele continua, enquanto D. Eutanásia cochila na cadeira da sala.